¬ Lição de economia nº21: Política cambial (Parte 6 – A política cambial no Plano Real)

O Plano Real, lançado em 1994, servirá, apesar de já relativamente longínquo, de estudo de caso para entendermos o câmbio fixo e seus desdobramentos. Não tratarei aqui da elaboração do plano, da troca de moeda do cruzeiro real para o real etc. O que nos interessa é o fato de o Plano ter utilizado como elemento mais importante a política cambial - das intervenções diretas, passando pela indireta (selic) até o pedido de ajuda ao FMI. Não coincidentemente, foi tipificado na época como âncora cambial, isto é, toda a economia estava ancorada (amarrada) no câmbio, mais especificamente, na cotação de US$1/R$1.

A estratégia básica do então presidente FHC (Fernando Henrique Cardoso), que trabalhou o plano ainda como ministro da fazenda no governo Itamar Franco (1992), foi fixar o preço do dólar em 1 real, garantindo que não fosse negociado nem acima nem abaixo disso no mercado de câmbio - na verdade, uma oscilação mínima de alguns centavos era inevitável e admissível. Ou seja, importadores, exportadores, investidores, turistas etc comprariam, ou venderiam, seus dólares a esse preço, ou bem perto dele. A fixação dessa paridade veio com uma valorização (ou sobrevalorização, como diziam na época)  prévia do câmbio, já que antes disso ele estava em R$1,30 ou R$1,40. A rigor, ou tecnicamente falando, o câmbio não era exatamente fixo, o governo só evitava que ele se desvalorizasse de forma excessiva, pois isso traria novamente a inflação. Entre julho de 1994 e janeiro de 1996, período de maior otimismo com o plano, o câmbio ficou abaixo de R$1 por dólar - em alguns momentos bateu em R$0,85. Nada ruim, pra quem visava a valorização e importados baratos.

Os efeitos positivos e negativos dessa valorização sobre a economia já vimos:

1º) queda na inflação, pois os produtos e matérias-primas importadas ficam baratos. Isso afeta o IPA e, em seguida, o IPC-A, que ficou baixo nos meses após o plano. A título de comparação, em junho de 1994, 1 mês antes do lançamento do Plano, o IPC-A fechou em 47,43% no mês - considerando todo o ano de 1993, impressionantes 2.477%.

2º) Os exportadores são prejudicados, pois recebem menos reais por cada dólar, dentre eles o têxtil e calçadista. Isso tende a desacelerar o PIB e reduzir o número de empregos, já que as exportações representam algo próximo de 20% da riqueza gerada.

Um outro efeito negativo sobre o PIB vem das próprias importações. Isto porque importações excessivas, como aconteceu na época, inundam o mercado de produtos de fora a preços baixos. Recordam-se das inúmeras lojinhas de R$1,99? O efeito disso não foi só sobre a desaceleração na inflação, foi também devastador sobre a indústria nacional que produzia bens similares (roupas, brinquedos, sapatos, acessórios, bugigangas em geral). Na incapacidade de reduzir custos para competir com estes produtos, em sua maioria vindos da China, não restou outra alternativa senão fecharem as portas. Soma-se a isso a crise enfrentada pelo setor exportador e temos um efeito péssimo sobre o PIB e o nível de empregos.

Mas, o governo deixou claro que seu primeiro objetivo era combater a inflação e a queda de 47,43% ao mês para algo próximo de zero nos meses seguintes seria bastante convincente para os eleitores. O foco no crescimento, via exportações, só foi pensado em 1999, mas já era tarde demais.

A âncora cambial

E o que fazer no mercado de câmbio para garantir esse dólar a R$1,00 e com isso importados baratos e inflação baixa? O que você faria se soubesse que o dólar está baratinho e que, provavelmente, uma hora irá subir de valor? Compraria dólares, claro! E foi o que os bancos, principalmente, fizeram ao longo de anos. Compravam dólares sabendo que uma hora o Plano acabaria e eles fariam um bom dinheiro.

Indo além, se as exportações estão comprometidas nesse cambio fixo não temos entrada de dólares no mercado de câmbio. Se as importações crescem em grande quantidade temos uma grande saída de dólares desse mesmo mercado de câmbio. Se todos compram dólar achando que ele subirá mais à frente e os guardam temos mais uma saída do mercado de câmbio. Resultado? Uma falta constante, e brutal, de dólares nos bancos. Todavia, como garantir a paridade nesse caso (1/1), e o preço baixo dele aos importadores? Com Política cambial, isto é, muitas intervenções do Bacen (Banco Central) no mercado de câmbio, vendendo, vendendo e vendendo dólares das reservas para evitar que a cotação do dólar subisse e puxasse a inflação de custos (importados mais caros). O Plano Real tinha, portanto, data para acabar, e isso aconteceria quando se exaurissem as reservas cambiais.

A coisa se agravou com a crise no México em 1994, época de lançamento do plano no Brasil. O câmbio fixo também era utilizado pelo governo mexicano e mostrou-se ineficaz e traumático. Eles o abandonaram e avisaram o mundo que o preço seria muito caro. Os investidores, imaginando o que aconteceria com o Brasil, fugiram do país e levaram seus dólares, ou seja, menos dólar no mercado de câmbio e mais reservas perdidas para conter sua alta. Em 1997 a Ásia entra em crise pelo mesmo motivo. Em 1998 a Rússia padece do mesmo mal. Faltavam apenas dois países a abandonar o câmbio fixo: nós e nossos hermanos Argentinos.

Em função das crises financeiras as reservas tiveram uma redução mais rápida que o previsto, e já em 1998 praticamente não as tínhamos mais; isto é, a fonte que alimentava a política cambial do governo, a mais importante, havia secado. Não poderíamos mais manter o câmbio fixo, ele precisava flutuar. Mas, como fazer isso se no fim do ano haveria eleição e o presidente que lançou o Plano era candidato? Como dar um 'jeitinho' de segurar o câmbio fixo, e a inflação, até lá?

Alguém "chutou" a taxa selic (intervenção indireta)? Acertou! E foi assim que aconteceu, o governo deu a segunda, mas não a última, cartada para manter o mercado de câmbio com dólares suficientes que evitassem a desvalorização cambial, mesmo que a um preço exageradamente alto, valeu-se da política monetária. O presidente do Bacen elevou então a taxa selic, e por alguns meses ela chegou a mais de 45% (ao ano), como alternativa, insana, de atrair especuladores (bancos) de todos os cantos do mundo com seus preciosos dólares. Funcionou, ao menos até que a reeleição estivesse garantida - os efeitos desastrosos disso sobre a dívida pública interna apareceram nos anos seguintes.

Contudo, a coisa não parou por aí; o capital especulativo não era suficiente para sustentar a falta de dólares no mercado de câmbio. O governo também emitiu em grande quantidade papéis cambiais (vendendo a alma ao capeta como vimos na lição 18), aqueles títulos públicos que pagam a diferença do dólar no vencimento, resumindo, garantem o valor do dólar lá na frente. Esse dólar lá na frente estaria muito elevado, obviamente, e alguém pagaria a conta. E pagamos! Foi suficiente? Não! Se a conta já estava saindo cara até aqui piorou ainda mais quando, dada a tendência de desvalorização crescente da moeda, emitimos o primeiro pedido de socorro ao FMI - batemos à porta do agiota. Só em 1998 foram US$ 41 bilhões. (veja artigo da Folha com reflexões do próprio FHC sobre o problema cambial em 1998)

A partir daí, em 1999, o governo FHC "não precisaria" mais dos especuladores, menos ainda das reservas. Abandonou o câmbio fixo, afinal não havia o que fazer, e viu o câmbio flutuar - tudo bem que quase sempre pra cima, como era previsível. O governo ainda tentou fazer algumas bandas cambiais em janeiro de 1999 para que ele não desvalorizasse de vez. Mas, ao liberá-lo, a partir de R$1,20, em menos de dois meses ele chegou a R$2,10. O resultado disso foi que o IPC-A no fim do ano ficou próximo de 9%; em 2002, com o dólar "beliscando" os R$4,0 o IPC-A fechou em 12,5%.

Em 21 de janeiro de 2009, ao fazer um balanço do Plano Real, um texto do Folha Online dizia: "Dez anos atrás, o Brasil parou para tentar desarmar uma 'bomba-relógio' montada pouco após o Plano Real. Era a política de bandas cambiais, que mantinha o dólar quase fixo e havia sido um dos pilares do sucesso do combate à inflação, mas que, em janeiro de 1999, parecia ter os dias contados por conta do desequilíbrio nas contas externas e da sangria das reservas internacionais".

Em 2001 o atentado nos EUA e a bancarrota Argentina forçaram o governo novamente a atrair especuladores e pedir mais ajuda ao FMI, mais US$ 15 bilhões. Porém, a desvalorização atingiu níveis críticos na virada do ano de 2002/2003 quando um novo presidente, de esquerda, estava prestes a assumir a presidência; o dólar estava próximo de R$4,0 - mais US$ 30 bilhões foram pegos com o FMI para tentar acalmar o mercado de câmbio.

Em linguagem mais popular, o governo manteve por longos anos um Pit Bull acorrentado. Ao criar coragem e libertá-lo das correntes as consequências seriam previsíveis, porém, inevitáveis. Resumo da ópera: com reservas cambiais, câmbio valorizado e inflação baixa FHC havia levado duas eleições. Com a ausência delas, câmbio desvalorizado e inflação em alta, não emplacou seu sucessor (José Serra), entregando a presidência ao, até então, ‘bicho papão’ da esquerda. Dali pra frente os maus agouros não se concretizaram, o dólar voltou a cair, o governo comprou muitos dólares para minimizar o efeito negativo sobre os exportadores, e o resto todo mundo já sabe, reservas cambiais recordes.

Aqui cabe uma última observação. O período em que o discurso contra a inflação é mais importante para a população definir o voto do que as demais propostas governamentais parece estar chegando ao fim. Na medida em que as pessoas (e os economistas) mais velhas forem morrendo, a memória inflacionária tende a ir junto. Ou seja, as novas gerações não presenciaram inflações de 50% ao mês e não sabem o trauma que isso gera na economia e nas famílias. Logo, a tendência é que os discursos contra a elevação da inflação dos candidatos à presidência tenham menos efeito sobre estes indivíduos, ao contrário do que aconteceu nos últimos 20 anos.

Um comentário:

  1. Encontrei seu blog por acaso, estava procurando material para estudar economia para um concurso e cheguei aqui. Vou ler suas lições, espero que continue.

    Legal encontrar alguém que gosta de ensinar o que sabe para os outros e com interesses tão variados!

    Abraços,

    Karen

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